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sábado, 21 de fevereiro de 2009

Now at last, I know

Foi quando, de súbito, deu-se conta da distância. Nunca, em todos aqueles tantos anos juntos, a vira tocar o piano. Lembrou-se do começo, de quando a conhecera e se encantara com as mil coisas que ela dominava, imensidão de assuntos, de gostos e prazeres, o instrumento destacado nas paixões. Nunca vira.
Provou um remorso nascido de seu desinteresse. Era o culpado, havia de ser. Mulher ganha, esqueceu-se de apreciar as entrelinhas, mesmo as mais explícitas. E como se lembraria do bendito piano quando tinha nas mãos ela? ELA! Costas, cabelo, nariz. Sinfonia.

Chegou à porta com a abordagem decorada. Linha por linha pensou, cena a cena.

- Você perdeu o juízo. Amanhã levanto cedo, sabia?
- Andei pensando.
- Novidade.
- É sério, me ouve. Não faz essa cara só, juro que é importante.
- Então diz!
- (...) Por que é que você nunca tocou uma música pra mim?
- Você só pode estar de brincadeira, fale que está.
- Não est...
- Me diz que você não me acordou para dizer uma bobagem dessa. Você sabe muito bem o porquê.
- Se soubesse, estaria tranqüilo. Me diz então.
- Você é que nunca quis. Outro dia mesmo chegou, eu tava aprendendo uma linda, Nina Simone. Tudo o que fez foi fechar o piano, nem se importou.
- Não gosto de bagunça, você sabe. Fechei porque você bagunça tudo. Joga a sua papelada no chão, a flanelinha no sofá, as suas coisas todas espalhad...
- Eu só estou respondendo a sua droga de pergunta e você arruma um jeito de me criticar! É por isso, é por isso que eu não deixo nunca nunca você me ouvir tocar!
- Não sei nem porque você está gritando, que escarcéu! Não sei o que eu tô fazendo aqui!
- Você veio fazer a maldita pergunta e atrapalhar a minha noite de sono.

- Toca uma música pra eu ouvir então.

- NÃO!
- Por favor, não custa nada. eu só queri...
- Vá embora, agora eu não posso. Minha mãe vai acordar, todo mundo vai. Uma da manhã!
- É só tocar baixi...
- Até amanhã.

Frustrado, entrou no carro e ligou o som. Piano, piano, piano. Haveria de existir, em alguma rádio, ao menos, uma música crua, sem o infeliz. O som definitivo e noturno. Como combinavam, a menina e o instrumento, feitos um para o outro. Passou a noite em esforço para lembrar por um instante que fosse, o retrato dela diante do quase-móvel antigo e insosso. Não havia na memória recordação alguma, havia a canção emudecida pela curiosidade. Adormeceu.

Dia seguinte, almoço terminado:

- Hoje passo na sua casa lá pelas seis. Queria muito ver o que te pedi ontem.
- Você cismou com essa história, hein? Pois tire o seu cavalinho da chuva!
- Não vejo razão pra você estar brava por causa disso, não custa nada!
- Eu tenho vergonha.

- Como é?
- É isso mesmo, eu tenho vergonha.
- Essa é boa! Agora pensa que eu sou besta, invente uma melhor! Você fazia recitais para um sem-fim de gente, e para o seu namorado não pode apresentar uma peça? Nem o atirei-o-pau-no-gato? Não caio mais nos teus caprichos!
- (...)
- Fale alguma coisa!
- Eu já disse, não toco e pronto.
- Toca sim! Ou toca ou não me vê nunca mais!

Estava feito. Ameaçara-a, sem lógica. Era causa perdida. Em segundos, acreditava, ela voaria em seu pescoço, jogaria para cima a aliança, choraria de raiva. Amaldiçoaria-lhe os anos, a vida. Que estupidez, não se conteve. Causa perdida.

- Está bem, uma só. Mas eu escolho. Agora.

Não era possível! Mulheres! Incrédulo com a resposta, sentiu culpa mas não hesitou.
Caminharam em silêncio os dois quarteirões e entraram na casa sem dizer palavra. Estavam sozinhos, os três: ele, ela, o piano.
Com uma cerimônia quase pagã, a menina abriu o piano, sentou-se e acomodou no suporte as partituras, uma porção delas. Olhou para trás, o namorado também sentado, esperando. Diante da ameaça sem verdade, sentiu-se importante. Ora, alguém então, nesse mundo, a amava um tanto assim. Ele queria assisti-la, queria ouvir. Olhou pra trás mais uma vez.

- Por tudo que é mais sagrado, menina!

Tímida e encolhida, lá estava ela. A música doce e grave, imaginou ser difícil. Dois pequenos erros não a fizeram parar, firmou a postura. Aos poucos tomava forma a melodia, como o barro moldado, também arte. Enquanto tocava, balançava discretamente o tronco, fechava, às vezes, os olhos, pés convictos na pedaleira. As mãos arredias para um lado e para o outro ofereciam ao velho piano um carinho que ele nunca conhecera. Ao velho piano, em música, ela entregava sua alma como a ele nunca tinha dado.
Sentiu ciúmes do instrumento mais do que de qualquer outro homem, aquele diabo arrebentara-lhe o ego. Sabia-se agora pobre, desnecessário.
Quis levantar-se do sofá e acabar logo com aquilo, mas ao assisti-la assim, os cabelos marrons dando na cintura, a atenção inteira ao que ele sequer conhecia, amou-a mais do que nunca.
Chegou mais perto antes de terminada a canção e pousou suas mãos sobre as dela, como a impedir. Ela entendeu. As palavras ao ouvido da amada: "me desculpe", a lágrima.
Ali, ao piano, mais do que nunca pertenceram um ao outro, ele e ela. A música calou-se porque para o amor é adequada a pausa, o sussurro. Os dedos uma vez última se apoaiaram ao teclado, sem delicadeza. Ali, ao piano, ela preferiu ouvir dele o ritmo, os sons: A única vertigem mais bonita que o silêncio.

_Feist - "Now at last"

sábado, 18 de outubro de 2008

2004

I.
Todos os dias lá pelas 18h30 ela chegava e, ao contrário de mim, sentava num lugar diferente. Espalhava as apostilas pela mesa com a maior displicência e sorria para a garçonete. Eu gostava de observar aqueles fiozinhos de cabelo caindo no olho que, sem sucesso, ela ficava tentando colocar no lugar. Desarrumado era mais bonito, mas as mulheres, até essas que vestem cinza e brincos pequenos, são assim mesmo. Dia sim, dia não, trazia uma mala enorme e eu me perguntava que diabos uma garota precisava carregar com tanta freqüência. Quase sempre, enquanto terminava de tomar a Coca-Cola, ela tirava da bolsa um livro e ficava folheando, folheando, esboçando sorrisos ou preocupações, coisa que eu achava um barato porque onde já se viu expressar o que se lê. Às vezes acho que ela fazia só pra se exibir, mas certeza nunca tive. Em nada.
Mais ou menos meia-hora depois fazíamos quase ao mesmo tempo o percurso até o cursinho onde eu daria as duas últimas aulas, eu sempre na frente. De vez em quando olhava pra trás fingindo derrubar alguma coisa, só para ver uma última vez a menina do final de tarde.




Era o cara mais esquisito do mundo, o professor de história, acho que devia ser sozinho. Mas sempre gostei das pessoas sozinhas, elas descobrem tanto sobre elas mesmas que acabam gostando. Sou meio sozinha também, mas isso porque falo pouco... Com os outros. Quando chego no café lá está ele com aquela xícara e aquele jornal enfiado na cara, coisa de gente chata. Só gente chata lê o jornal assim, nem amassa! Quando ele tá dando aula parece outra pessoa, todo teatral e firme e inteligente. Eu gosto das aulas, história me confunde. Ele me confunde.
Eu não sei o que é que essas meninas enxergam nele, sinceramente... Deve ser o cabelo. O jeito de rir. Ou é curiosidade mesmo.
Céus, porque é que eu tô pensando nisso?!!
Hoje o meu pé tá acabado das sapatilhas, não sei pra quê trocar de roupa, por mim vinha pro cursinho de collant, ia ser um escândalo, ou não, mas eu sou tímida. Essa mochila acaba com as minhas costas. Tudo isso por um jeans...
Às vezes tenho a impressão de que ele está olhando para cá, mas tenho mania de perseguição, minha amiga que fala. Diz que leonino é assim, acha que todo mundo tá olhando pra ele. Eu não acredito em horóscopo.
Ele tá mesmo olhando, céus, isso me deixa tão embaraçada! Deve lembrar que sou aluna, deve saber.
Mas eu vou indo porque estou atrasada (e ele acabou de sair).






II.
Outro dia eu a vi com o Benjamin, do Chico, na mão. Achei bacana uma garota tão novinha gostando do cara, pelo menos como escritor. Será que ela ouve? O que será que ela ouve?
Quando dei por mim estava de pé ao lado da cadeira dela, falando qualquer coisa sobre o livro, sobre música, sobre vestibular, a vida, a comida ruim do lugar ou assunto que o valha. A voz rouca não combinava muito porque ela tinha mesmo uma cara de criança, uma beleza prematura e doce. Doce.
Em questão de uma semana éramos amigos trocadores de livros e insultos. De história não sabia nada.
Com essa idade já se gosta de Sartre?
Já.
Essa confusão adolescente, uma pergunta estampada na cara era o que ela tinha de melhor. Imaturidade.
Ainda assim me ensinou tanto, como é que pode? Desse tamanho.
Uma vez fui buscá-la no jazz e nunca mais consegui achar no mundo nada mais provocante do que uma bailarina. É agressivo e é lindo.
Quando a beijei ela quase chorou de raiva, me chamou de ignorante e burro. Eu, seu professor.

Se você quiser se sentir vivo, pergunte a uma garota de 17 anos qual é o seu maior sonho.


Eu nem sei bem como aconteceu, mas era uma terça-feira. Olhei para o lado e lá estava o professor, feito um bicho empalhado, bisbilhotando o que eu lia.
Fui gentil porque não sei falar de livro sem perder os sentidos, tem um pouco de hipnose nisso. Ainda por cima me contou que tinha o filme, disse que podia me emprestar...
E emprestou.
Saramago, Goethe, Drummond, Hilst. Os sobre História eu fingia ler porque sou preguiçosa pra tudo que não me interessa e depois inventava opiniões para parecer inteligente. A imaginação é só o que sempre tive para impressionar....
Só me dava conta do perigo quando eu já estava falando sobre seriadinhos, sobre blog e brigadeiro, até que um dia resolvi perder a vergonha de não saber.
Com essa idade ainda se vê desenho?
Ainda.
Esse olhar que já assistira quase todas as paisagens do mundo era o que ele tinha de mais lindo. Chão.
Mesmo assim duvidava tanto, como é que pode? Com essa idade!
Um dia olhei pelo espelho da sala de dança e ele estava me esperando. Quando o ensaio acabou, fiquei com vergonha da minha meia-calça rosa e não queria sair de jeito nenhum. Ele disse que eu estava uma gracinha, muito debochado... Não sei porquê me olhava daquele jeito...
No fim da escada ele me beijou e eu só não saí correndo porque tinha as pernas moles e o coração já chegando na garganta. É claro que xinguei porque é isso que a gente faz quando não entende. Eu, a aluna.

Se você quiser se sentir viva, pergunte a um cara de 30 anos o que ele vê.





III.
Nos meses que se seguiram, dar aula para a turma A me fazia suar feito um suíno. Lá do canto ela passava o tempo distraída, chegou a dormir uma ou outra vez, como se lá na frente não houvesse ninguém. Perguntei se a aula era desinteressante, se eu era, ela disse que não, que era sono mesmo. Com que direito?
Uma vez ela me tirou pra dançar em pleno estacionamento, fiquei aborrecido, mas foi bom. Eu nunca tinha dançado com uma garota na vida.
Eu não cheguei a me apaixonar, fiquei encantado.
Se duas pessoas ficam encantadas é porque se admiram muito, mas não necessariamente juntas. Eu a queria para ter, ego de homem. Quem não quer ter o que admira?





Era engraçado ver as menininhas do cursinho se atirando nele, se lamentando 'porque professor não pode ter nada com aluna, é antiético'. Eu ria por dentro, envaidecida, se soubessem... É claro que tinha gente que sabia. Alguns achavam que ele era da minha família, coisa que eu cheguei até a confirmar, não sei o porquê.
Nunca mais prestei atenção na aula de história, me dava uma culpa tremenda. Ver um homem falando sobre coisa que ama é perigosíssimo...
Um dia sem querer ele disse que minha inteligência jamais seria levada a sério porque eu era bonita. Que eu seria um fracasso de engenheira. Poucas coisas na vida me magoaram tanto. Poucas opiniões foram tão certeiras.
O fato de sentirmos coisas diferentes não chegou a tirar a minha paz porque no fim das contas eu estava muito mais apaixonada pela situação do que por ele.
Eu o queria para ter, inocência de menina. Quem não quer ter o que sempre procurou?






IV.
Quando a lista dos aprovados saiu, fiquei angustiado e aliviado.
As únicas promessas que ela me fez foram a de não ficar arrogante e a de não deixar de escrever.
Dois anos depois nos encontramos na formatura de um colégio da rede, ela com o namorado, eu recém-separado. Falamos amenidades rápidas, nada demais.
Vestido, maquiagem, a articulação no conversar.
A íris escancarando mil cores era só que sobrara...
Já não era mais uma menina com seus sonhos, era uma mulher e suas respostas.




Só chegou a realmente doer quando cheguei em casa e me deparei com as apostilas de história empilhadas no canto. Nunca mais.
Chorei baixinho uma noite inteira, para mamãe não escutar.
Não me lembro de nada do que ele disse naquele dia.
Uma memória bonita.
Houve um encontro rápido na formatura de uma amiga, tempos depois conversamos pela internet por mais de uma hora.
Uma fragilidade inédita, as opiniões extremistas, os cabelos curtos.
O jeito protetor era só o que sobrara...
Já não era mais um homem e sua experiência, era um menino e seu coração.